INAC preocupado com o número de crianças forçadas a trabalhar

Enquanto muitas crianças e adolescentes se preparam para mais um dia de aula, outras percorrem as ruas da cidade de Menongue com caixas de engraxar sapatos, tabuleiros e cestos de bolinhos ou de refrigerantes à cabeça e sacos nas mãos, em busca de um sustento que deveria ser responsabilidade dos pais ou adultos.
Fernando Manuel, com 15 anos de idade, saiu do município da Matala, na província da Huíla, e chegou a Menongue em Dezembro de 2024, no comboio dos Caminhos-de-Ferro de Moçâmedes (CFM), com o objectivo de trabalhar nos mercados da capital do Cubango e ganhar dinheiro para ter uma vida melhor.
Fernando Manuel disse que não pensa em dar continuidade aos estudos porque viver sozinho e ser vendedor ambulante não tem sido fácil, uma vez que o dinheiro que ganha serve para comprar comida, roupa e o remanescente envia para os pais na Matala.
“A minha infância e a de muitos amigos que vendemos juntos no mercado do bairro da Paz continua adiada, não por escolha, mas por necessidade que eu e a minha família enfrentamos”, lamentou.
Pedro Chingui vive no bairro Bela Vista, arredores da cidade de Menongue, com os pais. Disse que começou a lavar carros quando tinha apenas 8 anos, na companhia dos primos. Hoje com 16 anos, consegue lavar quatro carros por dia e chega a faturar entre seis a oito mil kwanzas, a depender dos clientes.
“Trabalho o dia todo, às vezes das 8 da manhã às 17 horas. Faço esse trabalho que apesar de ser bastante cansativo e difícil, vale a pena para levar qualquer coisa para casa do que não ter nada para ajudar a família, porque os meus pais não trabalham”, esclareceu.
Domingos Cabinda, de 14 anos, também residente no bairro Boa Vida, disse que vive com a mãe e deixou de frequentar a escola para engraxar sapatos, com o objectivo de ajudar nas despesas de casa.
De voz tímida e rosto cansado, o menino revelou que
trabalha todos os dias, das 8 às 16horas, cobrando 100 a 200 kwanzas por cada cliente. Por dia chega a faturar mil kwanzas ou mais.
“Deixei a escola porque os meus pais não têm condições, por isso, engraxar sapatos é o que me ajuda a comer e levar algo para casa. Às vezes ganho pouco, mas é melhor do que ficar em casa a passar fome”, desabafou.
Sonho de ser juiz adiado
A história se repete entre várias outras crianças e adolescentes que frequentam os mercados mais movimentados da cidade de Menongue para exercer diversas actividades, como nos contou o menino Estévão Dala, de 16 anos, que começou a vender sacos de plástico quando tinha apenas 10 anos.
Estévão Dala disse que começou a trabalhar depois de ir viver com a avó, após a separação dos pais. Com isso, viu o sonho de ser juiz cada vez mais adiado.
“Gostaria de estudar, mas não dá porque a minha avó não tem condições para pagar propina e o meu irmão mais velho também não conseguiu continuar com os estudos porque tínhamos que ajudar a nossa avó com qualquer coisa em casa”, revelou.
Vendedora ambulante há mais de cinco anos
Visivelmente habituada à rotina das ruas, Domingas Rodrigues, de 17 anos, disse que tem a 9ª classe concluída e é vendedora ambulante há mais de cinco anos. Reconhece que trabalhar na rua é perigoso, devido a alguns adultos que tratam mal as crianças zungueiras.
“Trabalhar na rua é perigoso, tem havido acidentes e há pessoas que nos tratam mal. Mas temos que aguentar, aliás não estamos a roubar, estamos a lutar para sobreviver”, relatou.
Augusto dos Santos, de 14 anos, consegue conciliar a venda ambulante e os estudos. Primeiro vai às aulas e depois vai ao mercado do bairro Tchivonde, onde vende roupa usada. “Alguns de nós somos zungueiros porque não temos outra escolha.
Os nossos pais estão desempregados e, às vezes, exercemos essas actividades com o conhecimento deles, porque ajudamos na compra da comida em casa”, explicou.
INAC considera alarmante número de casos na província
O Instituto Nacional da Criança (INAC) no Cubango registou, durante o primeiro trimestre deste ano, mais de 60 casos de exploração de trabalho infantil. Já no período de Janeiro a Dezembro de 2024, foram notificados 130 casos, conforme revelou a directora local do INAC, Lérias Biwango.
A responsável do INAC manifestou-se preocupada com o número de casos de exploração de trabalho infantil, que considerou alarmantes.
“São números que nos preocupam e que não nos deixam descansar, porque ainda há uma enorme resistência por parte da população em denunciar os casos de exploração de trabalho infantil”, lamentou.
Segundo Lérias Biwango, as principais causas da persistência do trabalho infantil na província estão relacionadas com a fragilidade das famílias, que muitas vezes não conseguem garantir o básico para as crianças, como alimentação, vestuário e material escolar.
Quando as crianças se vêem privadas dessas necessidades essenciais, frisou, procuram meios de sobrevivência por conta própria, recorrendo a pequenos trabalhos em troca de algum rendimento.
A directora provincial do INAC indicou ainda que muitas famílias deixam de cumprir o seu dever fundamental de proteger, cuidar e prover o necessário às crianças, colocando-as numa situação de vulnerabilidade extrema.
“É essa falta de assistência que leva muitas crianças a trocarem a escola por actividades laborais precárias, apenas para garantir o mínimo de sustento”, lamentou a responsável do INAC na província do Cubango.
Desafio das autoridades
Lérias Biwango disse que o combate ao trabalho infantil continua a ser um dos grandes desafios das autoridades governamentais na província do Cubango, numa altura em que o país se compromete com os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável, que visam defender o fim dessa prática negativa.
A responsável informou que o INAC tem desenvolvido várias acções para salvaguardar o interesse superior da criança, conforme estabelece a Lei nº 25/12, de 22 de Agosto, sobre a Protecção e Desenvolvimento Integral da Criança, tendo em conta que o artigo 7º da referida lei proíbe qualquer forma de negligência, violência, exploração ou opressão contra menores, prevendo sanções para os infractores.
Lérias Biwango considerou que nenhuma medida estatal será suficiente se a sociedade, e sobretudo as famílias, não assumir o seu papel de velar pelo desenvolvimento integral das crianças.
Face a este cenário, apelou à colaboração da sociedade civil, autoridades tradicionais e demais instituições públicas para o reforço das acções de sensibilização e protecção dos menores, bem como a denúncia de casos de exploração de trabalho infantil.
Psicólogo defende apoio psicossocial
O psicólogo clínico Faustudo Augusto defendeu a necessidade urgente de se implementar apoios psicossociais às crianças vítimas de exploração de trabalho infantil na província do Cubango, porque muitas delas correm o risco de enfrentar traumas profundas que comprometem o seu desenvolvimento emocional, social e académico.
Segundo Faustudo Augusto, o trabalho infantil pode provocar uma série de impactos psicológicos profundos e duradouros, tanto durante a infância, quanto na fase adulta, e isto pode levar a um estado constante de alerta e medo, sobretudo se o trabalho envolve abuso, exploração ou ambientes perigosos.
As causas do trabalho infantil, disse, estão fortemente ligadas à pobreza extrema e à falta de assistência ou negligência parental, que fazem com que muitas famílias enviem os filhos à rua para procurar o sustento para casa. Por outro lado, acrescentou, existem casos em que são as próprias crianças que saem de casa para procurar melhores condições de vida, sendo privadas do seu direito à escola, saúde e habitação.
“Muitas crianças são obrigadas a trabalhar para ajudar na sobrevivência da família, o que as priva do direito à infância, à educação e à segurança”, lamentou.
O especialista alertou que quando as crianças começam a trabalhar muito cedo, enfrentam consequências sérias, como o abandono escolar, problemas de auto-estima, ansiedade, depressão e dificuldades de relacionamento. Essas experiências precoces de responsabilidade e esforço físico excessivo, sublinhou, deixam marcas que podem durar até à fase adulta.
Faustudo Augusto apontou que as crianças que trabalham cedo são frequentemente expostas a pressões e responsabilidades desproporcionais à sua idade, tendo alertado que a exploração do trabalho infantil compromete o desenvolvimento emocional, físico e educacional dos menores.
O psicólogo, que também é responsável do Programa de Saúde Mental na província do Cubango, disse que as autoridades locais têm levado a cabo várias acções de assistência psicológica, social e educativa para as vítimas de exploração de trabalho infantil e não só, para serem apoiadas e reintegradas num ambiente saudável que promova o seu crescimento integral.
Transtornos mentais
A exploração do trabalho infantil, segundo o psicólogo clínico, pode causar grandes traumas ou transtornos mentais às crianças e se repercutir na fase adulta, tais como estresse pós-traumático ou uma depressão que pode levar o indivíduo a cometer suicídio.
Para além da baixa autoestima, transtornos emocionais, dificuldades de relacionar-se com os outros, prosseguiu, o trabalho infantil precoce interfere na escolarização e no desenvolvimento cerebral da criança, prejudicando a atenção, memória e capacidade de aprendizagem, afectando as oportunidades de ascensão social no futuro.
“Os efeitos psicológicos do trabalho infantil não desaparecem com o tempo, pelo contrário, tendem a se intensificar, caso não haja intervenção adequada. Por isso, é essencial garantir apoio psicossocial, acesso à educação e ambientes seguros para que essas crianças possam ter uma infância saudável e um futuro digno”, apelou.
Renovação do compromisso para o fim do trabalho infantil
O dia 12 de Junho, Dia Mundial contra o Trabalho Infantil, foi instituído pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) em 2002, data da apresentação do primeiro relatório global sobre o trabalho infantil na Conferência Anual do Trabalho.
Desde então, a OIT convoca a sociedade, os trabalhadores, os empregadores e os governos do mundo a se mobilizarem contra o trabalho infantil.
O símbolo da campanha e da luta contra o trabalho infantil no mundo é o cata-vento de cinco pontas coloridas (azul, vermelha, verde, amarela e laranja). Ele tem um sentido lúdico e expressa a alegria que deve estar presente na vida das crianças e adolescentes. O ícone representa ainda movimento, sinergia e a realização de acções permanentes e articuladas para a prevenção e a erradicação do trabalho infantil.
Este ano, o tema escolhido é “Os avanços são claros, mas ainda há muito por fazer: vamos acelerar os esforços!”
Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT),
o tema deste ano reflecte tanto os progressos alcançados como a necessidade de intensificar a acção para atingir os objectivos globais.
A data vai ser marcada com a publicação das estimativas e tendências a nível mundial do trabalho infantil para 2025, um relatório conjunto da OIT e do UNICEF que vai fornecer uma visão global do ponto em que o mundo se encontra relativamente aos compromissos para eliminar o trabalho infantil.
“Embora os dados pormenorizados ainda não estejam disponíveis, as estimativas e as tendências identificadas irão orientar os debates políticos e apelar à renovação do compromisso e investimento para eliminar o trabalho infantil”, refere a OIT numa nota de imprensa.
A organização apela à plena ratificação da Convenção n.º 138 da OIT sobre a idade mínima para admissão ao emprego e a implementação da Convenção n.º 182 da OIT relativa à interdição das piores formas de trabalho das crianças.
A sua ratificação e implementação efectivas, esclarece, continuam a ser essenciais para alcançar os objectivos definidos pelo Apelo à acção de Durban, que insta os Estados a procurar reforçar a prevenção, a protecção e as parcerias para eliminar o trabalho infantil.
A nota refere ainda que a OIT trabalha em estreita colaboração com os governos, as organizações de empregadores e de trabalhadores, a sociedade civil e os parceiros internacionais para apoiar políticas e programas que abordem as causas profundas do trabalho infantil, reforçando a protecção social, os sistemas educativos e as oportunidades de trabalho digno para pessoas adultas e jovens.